Espermatozoa

Não se passa um dia sem que questione a justeza ou a necessidade desta passagem pelo mundo. Um esgar aberto a provocar com cores berrantes os poucos instantes perfeitos, um gorgolejo bebido a preto-e-branco num casebre de juncos onde apenas brilhe um pequeno altar, já podre, ainda que revestido a talha-dourada. Aquele verso que fala dos risos das crianças dos outros apenas lhes maquilha os uivos e os zurros, a reprodução é uma farsa e a continuidade uma traição ao destino de qualquer espécie que saiba reconhecer que, fazendo mais mal que bem, o melhor é desaparecer.

La Mancha

Um dia disseram-me – que digo eu, já me disseram tantas vezes – que não devia dar tanta, ou nenhuma, importância ao que os outros possam pensar do que faço, digo ou sou. É uma regra simples que até um puto (outro puto qualquer) domina na perfeição. O que se esqueceram de me dizer é que também não devia dar importância ao que penso de mim próprio, nascente de todos os fogos-fátuos das ilusões do que os outros poderão pensar. Um outro dia disseram-me que teríamos um polícia dentro de cada um de nós se fosse para não podermos pensar à vontade, seja acerca dos outros ou do que possam pensar, seja acerca de nós próprios, ou das raivas que queremos falar. Pode adiar-se um crescimento uma vida inteira com medo de ter que ir a terreiro defender as nossas verdades. E isto foi outra coisa que um dia me disseram. Pode crescer-se por dentro de um adiamento do sentir, mas morre-se mais um bocadinho, cada vez mais devagar. Pode morrer-se sepultado em si mesmo enquanto se acendem pelejas contra moinhos de vento. Escreveram-me um dia, sem que fosse directamente, que há pessoas que têm medo ainda que nem elas saibam muito bem de quê. Creio que terão medo de que aconteça o que forçam: que os apaguem; como tal, apagam-se. Fuga em frente dos passos atrás que nos cravam ao mesmo sítio sem volta no pensar. Disseram-me um dia que eu escrevia melhor quando não escrevia para os outros, mas não sei, nunca soube, para quem escrevo quando acho que estou a escrever.

Stalker

A porta finge sempre encerrar na rua o pouco que sobra da esperança. Sobe um miasma de rosas murchas de onde deveriam desprender-se mistérios, fés. O frio é uma protecção contra o odor que ficou desde que as fotografias entraram em combustão espontânea. Autofagismo da costela mínima.

Inícios

está um dia propício para o trabalho dos ventos e do olhar. a trovoada abate-se sobre o mar plúmbeo. (…)
hoje, foi-me difícil acordar com predisposição para amar o mundo. sou um homem sozinho, perdido no meio de imagens enevoadas doutros lugares.
o que me rodeia cansou-se de mim. dormito.
o centro do mundo vai da boca à erecção do enforcado. para que me servirá o centro do mundo? contento-me com pouco: sinto o ardor de certas iluminações crepusculares sobre a pele. adivinho nelas uma ligação com a morte, com aquele centro do mundo cheio de nódoas e sonolência.
a vida, tal como a vivemos, é insuficiente, não tem grandes alegrias. vivo mal, não sei onde me esconder para morrer. vou perpetuando o corpo numa espécie de asfixia. amo às escondidas este jogo. vivo na penumbra dos dias onde avisto cabeças decapitadas, mitologias, peles estelares que se rasgam e iluminam ao mais pequeno contacto da língua. sonhos terríveis, velocíssimos, desérticos.
passei a amedrontar-me quando apercebo o meu reflexo nos espelhos. odeio-me onde me reconheço. decido destruir as imagens que se parecem comigo e estilhaçar os espelhos que surgem, obscenos, no interior do sono. rasgar o dia pela linha da madrugada e regressar à noite, à inacreditável noite dos enforcados. deixar que a voragem da geada queime tudo e limpe o corpo. abandonar-me-ei numa fresta escavada entre a noite e a alba, esse espaço que se ergue como um eremitério, um abrigo.
o que mais desejo é não me encontrar em lado nenhum da memória, quando lá chegar; e o mar já não estar onde o deixei, e nenhum amigo ter chegado.
Al Berto, O Medo (2), 1984