Inícios

está um dia propício para o trabalho dos ventos e do olhar. a trovoada abate-se sobre o mar plúmbeo. (…)
hoje, foi-me difícil acordar com predisposição para amar o mundo. sou um homem sozinho, perdido no meio de imagens enevoadas doutros lugares.
o que me rodeia cansou-se de mim. dormito.
o centro do mundo vai da boca à erecção do enforcado. para que me servirá o centro do mundo? contento-me com pouco: sinto o ardor de certas iluminações crepusculares sobre a pele. adivinho nelas uma ligação com a morte, com aquele centro do mundo cheio de nódoas e sonolência.
a vida, tal como a vivemos, é insuficiente, não tem grandes alegrias. vivo mal, não sei onde me esconder para morrer. vou perpetuando o corpo numa espécie de asfixia. amo às escondidas este jogo. vivo na penumbra dos dias onde avisto cabeças decapitadas, mitologias, peles estelares que se rasgam e iluminam ao mais pequeno contacto da língua. sonhos terríveis, velocíssimos, desérticos.
passei a amedrontar-me quando apercebo o meu reflexo nos espelhos. odeio-me onde me reconheço. decido destruir as imagens que se parecem comigo e estilhaçar os espelhos que surgem, obscenos, no interior do sono. rasgar o dia pela linha da madrugada e regressar à noite, à inacreditável noite dos enforcados. deixar que a voragem da geada queime tudo e limpe o corpo. abandonar-me-ei numa fresta escavada entre a noite e a alba, esse espaço que se ergue como um eremitério, um abrigo.
o que mais desejo é não me encontrar em lado nenhum da memória, quando lá chegar; e o mar já não estar onde o deixei, e nenhum amigo ter chegado.
Al Berto, O Medo (2), 1984

1 comentário:

  1. Estes inícios prometem!

    Gostei muito do texto escolhido. Alguém que tem coragem de falar de medos. Dos seus medos.

    Para algumas mentes a leitura deste texto faria classificar o autor de um depressivo. Para mim é alguém que pensa, que ousa dizer o que muitos sufocam no fundo do seu ser. Que admitindo ter medos, quer chamá-los pelos nomes e olhar para eles sem complexos. Não quer fugir ou tapar os olhos enquanto canta alto para abafar o som dos seus pensamentos. Quer seguir o caminho mais difícil, mas aquele que lhe dará alguma hipótese de ter paz.

    “a vida, tal como a vivemos, é insuficiente, não tem grandes alegrias.”
    Procure-se então algo que nos satisfaça. Mesmo que se corra o risco de não encontrar, que morramos nesse empenho.

    Prefiro mil vezes estas pessoas do que aquelas que linearmente classificam os outros de deprimidos e depois preferem viver nos seus mundos desidratados.

    Abraço!

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